O elogio dos Professores, por Diogo Ramada Curto

É urgente pôr cobro ao desinteresse dos representantes da alta cultura por aqueles que formam, nas suas lutas pelo ensino travadas no dia-a-dia, a mais importante base de um sistema cultural.

Em Portugal, é urgente que aqueles que se dizem representantes da alta cultura se interessem pelo ensino básico e secundário. À imagem pejada de equívocos e de ideias feitas
acerca das professoras e dos professores, haverá que opor uma campanha de revalorização dos mesmos. Basta de tanto desprezo! O trabalho dos professores e as condições em
que exercem o seu papel de educadores merecem particular atenção.
As sucessivas depreciações salariais a que este grupo foi sujeito, a multiplicação de ideias erradas acerca da sua resistência à avaliação, a sua desautorização, numa teia de
relações que interpretou mal a relação entre a escola, a comunidade e as responsabilidades da família e a preocupação excessiva em
exercer sobre eles uma actividade de policiamento e vigilância (como notou António Guerreiro no Expresso, edição de 14 de Julho) contribuíram para uma situação a que é urgente pôr cobro.
Por sua vez, o artificialismo de muitos representantes da alta cultura conduziu a uma espécie de desinteresse pelos que formam,
nas suas lutas pelo ensino, travadas no dia-a-dia, a mais importante base de um sistema cultural.
Por exemplo, uma das expressões máximas do pedantismo da suposta alta cultura levou, muito recentemente, a atribuir a ignorância dos chefes políticos
— que já não são o que eram... sem nunca terem sido o que deveriam – à voracidade invasora
de uma cultura de massas, determinada economicamente (Clara Ferreira Alves, também no Expresso, edição de 21 de Julho).
Discordo, apesar de reconhecer que o propósito era elevado e corajoso. Pois consistia em explicar as jogadas feitas por um ministro poderoso para a obtenção de uma licenciatura de
aviário.
À pobreza da antinomia entre cultura de elite e cultura de massas, artificial e pedante, será necessário começar por opor
uma análise das razões escondidas que a determinaram e, sobretudo, que explicam o silêncio a que tem sido votado o
mais numeroso grupo com responsabilidades na formação das novas gerações. Se não compreendermos o papel dos professores do ensino básico e
do secundário, se não soubermos fazer a defesa da sua actuação, muitas vezes na
contra-corrente das condições
em que trabalham, teremos
sempre da cultura uma ideia
truncada. Logo, povoada de
oposições mais ou menos
artificiais, como a que separa a
cultura de elite da de massas.
Que um sistema cultural
depende da configuração dos
grupos que nele participam
parece ser uma evidência
elementar. No caso português,
como em muitos outros, pode
discutir-se se o peso da
reprodução familiar e dos grupos
sociais dominantes alguma vez
foi contrariado pelo acesso ao
ensino e às oportunidades
meritocráticas que este deveria
proporcionar. O trabalho dos
professores entra aqui, opondose
em grande medida aos
mecanismos da reprodução
social e permitindo a criação de
uma sociedade mais livre e
aberta. Mais igualitária, talvez...
Claro que são sabidas as
fragilidades do nosso sistema de
ensino, ao nível da sua legislação
inadequada e cada vez mais
burocratizante, do seu
financiamento, das suas
instalações e, em muitos dos
casos, da sua precária
institucionalização, incluindo a
formação dos professores. O
funcionamento do mesmo
sistema depende, também, de
condições e de meios que se
encontram muito para além das
intenções dos que nele
participam — em primeiro lugar,
dos professores. E, no entanto,
sem uma conjugação de esforços
destes últimos nada pode ser
feito.
Pouco importa que as divisões
políticas, jornalísticas ou
académicas levem a separar
cultura e ensino. Os dois
sistemas têm de ser pensados em
conjunto.
Pouco importa também que os
representantes da alta cultura se
concebam a si próprios em vazo
fechado, numa redoma de cristal
reluzente. Tendo, ao longe, uma
ideia mais ou menos tosca de um
público ignaro, alienado por
configurações sucessivas de uma
cultura massificada de consumo,
dele se distinguindo a todo o custo
através da referência a géneros,
arcanae, que permanecem só ao
alcance de iniciados e dos que
sabem o que se faz “lá fora”. É que
os mesmos representantes
também se encontram presos
numa malha de instituições e
instâncias: fundações, organismos
públicos, universidades,
indústrias culturais, grupos
económicos de comunicação, etc.
A ponto de, muitas vezes, as suas
interpretações não passarem de
respostas que servem os
interesses mais imediatos de
quem lhes paga.
De qualquer modo, a minha
discordância é total em relação
ao argumento de que a cultura
de massas, baseada
exclusivamente no desejo da
ganhunça, tudo invadiu, a ponto
de já não haver chefes ou génios
literários. E os riscos de
projectar no passado uma visão
idealizada, expressão da
melancolia por uma idade
dourada, não são os únicos que
se correm.
Como procurei sublinhar, a
pobreza da simples oposição em
que se baseia um argumento
desta natureza é bem reveladora
de duas coisas: por um lado, do
ensimesmamento em que caíram
muitos dos representantes de
uma suposta alta cultura, que
comunicam entre si em vaso
fechado, numa espécie de
pretensiosismo de que não estão
ausentes infindáveis tricas ou
conflitos de capelinhas; por
outro lado, de uma incapacidade
para pensar como é que funciona
um sistema cultural, que não
pode ser reduzido a simples
antinomias, pois é composto de
instituições, de relações entre
vários sistemas, incluindo aqui
as indústrias culturais, e de
múltiplos agentes, incluindo os
professores dos ensinos básico e
secundário.
O elogio destes últimos terá
sempre de passar pelo
reconhecimento do seu trabalho,
bem como pela análise serena
das condições em que exercem o
seu magistério. Sem este esforço,
são imensos os riscos de repetir
velhas ideias acerca da falta de
génios (ou dos líderes que já não
são cultos) no meio de um povo
ignaro.

Em Portugal, é urgente que aqueles que se dizem representantes da alta cultura se interessem pelo ensino básico e secundário. À imagem pejada de equívocos e de ideias feitas acerca das professoras e dos professores, haverá que opor uma campanha de revalorização dos mesmos. Basta de tanto desprezo! O trabalho dos professores e as condições em que exercem o seu papel de educadores merecem particular atenção.

As sucessivas depreciações salariais a que este grupo foi sujeito, a multiplicação de ideias erradas acerca da sua resistência à avaliação, a sua desautorização, numa teia de relações que interpretou mal a relação entre a escola, a comunidade e as responsabilidades da família e a preocupação excessiva em exercer sobre eles uma actividade de policiamento e vigilância (como notou António Guerreiro no Expresso, edição de 14 de Julho) contribuíram para uma situação a que é urgente pôr cobro.

 

Por sua vez, o artificialismo de muitos representantes da alta cultura conduziu a uma espécie de desinteresse pelos que formam, nas suas lutas pelo ensino, travadas no dia-a-dia, a mais importante base de um sistema cultural.

Por exemplo, uma das expressões máximas do pedantismo da suposta alta cultura levou, muito recentemente, a atribuir a ignorância dos chefes políticos — que já não são o que eram... sem nunca terem sido o que deveriam – à voracidade invasora de uma cultura de massas, determinada economicamente (Clara Ferreira Alves, também no Expresso, edição de 21 de Julho).

Discordo, apesar de reconhecer que o propósito era elevado e corajoso. Pois consistia em explicar as jogadas feitas por um ministro poderoso para a obtenção de uma licenciatura de aviário.

À pobreza da antinomia entre cultura de elite e cultura de massas, artificial e pedante, será necessário começar por opor uma análise das razões escondidas que a determinaram e, sobretudo, que explicam o silêncio a que tem sido votado o mais numeroso grupo com responsabilidades na formação das novas gerações. Se não compreendermos o papel dos professores do ensino básico e do secundário, se não soubermos fazer a defesa da sua actuação, muitas vezes na contra-corrente das condições em que trabalham, teremos sempre da cultura uma ideia truncada. Logo, povoada de oposições mais ou menos artificiais, como a que separa a cultura de elite da de massas.

Que um sistema cultural depende da configuração dos grupos que nele participam parece ser uma evidência elementar. No caso português, como em muitos outros, pode discutir-se se o peso da reprodução familiar e dos grupos sociais dominantes alguma vez foi contrariado pelo acesso ao ensino e às oportunidades meritocráticas que este deveria proporcionar. O trabalho dos professores entra aqui, opondo-se em grande medida aos mecanismos da reprodução social e permitindo a criação de uma sociedade mais livre e aberta. Mais igualitária, talvez...

Claro que são sabidas as fragilidades do nosso sistema de ensino, ao nível da sua legislação inadequada e cada vez mais burocratizante, do seu financiamento, das suas instalações e, em muitos dos casos, da sua precária institucionalização, incluindo a formação dos professores. O funcionamento do mesmo sistema depende, também, de condições e de meios que se encontram muito para além das intenções dos que nele participam — em primeiro lugar, dos professores. E, no entanto, sem uma conjugação de esforços destes últimos nada pode ser feito.

Pouco importa que as divisões políticas, jornalísticas ou académicas levem a separar cultura e ensino. Os dois sistemas têm de ser pensados em conjunto.

Pouco importa também que os representantes da alta cultura se concebam a si próprios em vazo fechado, numa redoma de cristal reluzente. Tendo, ao longe, uma ideia mais ou menos tosca de um público ignaro, alienado por configurações sucessivas de uma cultura massificada de consumo, dele se distinguindo a todo o custo através da referência a géneros, arcanae, que permanecem só ao alcance de iniciados e dos que sabem o que se faz “lá fora”. É que os mesmos representantes também se encontram presos numa malha de instituições e instâncias: fundações, organismos públicos, universidades, indústrias culturais, grupos económicos de comunicação, etc.

A ponto de, muitas vezes, as suas interpretações não passarem de respostas que servem os interesses mais imediatos de quem lhes paga. De qualquer modo, a minha discordância é total em relação ao argumento de que a cultura de massas, baseada exclusivamente no desejo da ganhunça, tudo invadiu, a ponto de já não haver chefes ou génios literários. E os riscos de projectar no passado uma visão idealizada, expressão da melancolia por uma idade dourada, não são os únicos que se correm.

Como procurei sublinhar, a pobreza da simples oposição em que se baseia um argumento desta natureza é bem reveladora de duas coisas: por um lado, do ensimesmamento em que caíram muitos dos representantes de uma suposta alta cultura, que comunicam entre si em vaso fechado, numa espécie de pretensiosismo de que não estão ausentes infindáveis tricas ou conflitos de capelinhas; por outro lado, de uma incapacidade para pensar como é que funciona um sistema cultural, que não pode ser reduzido a simples antinomias, pois é composto de instituições, de relações entre vários sistemas, incluindo aqui as indústrias culturais, e de múltiplos agentes, incluindo os professores dos ensinos básico e secundário.

O elogio destes últimos terá sempre de passar pelo reconhecimento do seu trabalho, bem como pela análise serena das condições em que exercem o seu magistério. Sem este esforço, são imensos os riscos de repetir velhas ideias acerca da falta de génios (ou dos líderes que já não são cultos) no meio de um povo ignaro...

 

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