Estratégia nacional de educação para a cidadania – parecer do SPN

30 de outubro de 2018


ESTRATÉGIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA

PARECER do SPN

 

1. Introdução

Pelo Despacho n.º 6172/2016, de 10 de maio, foi criado pelo Governo o “Grupo de Trabalho de Educação para a Cidadania”, com a “missão de conceber uma Estratégia de Educação para a Cidadania, a implementar nas escolas do ensino público, com o objetivo de incluir nas saídas curriculares, em todos os graus de ensino, um conjunto de competências e conhecimentos em matéria de cidadania.”

Aquele grupo de trabalho, constituído por uma equipa de representantes de múltiplos departamentos governamentais, um representante da Associação Nacional de Municípios e “peritos/as na área da cidadania e educação” apresentou, tendo como base “a proposta elaborada e apresentada ao Governo em janeiro de 2017 pelo Grupo de Trabalho de Educação para a Cidadania (GTEC)” uma “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC)”, apresentada aqui   http://www.dge.mec.pt/estrategia-nacional-de-educacao-para-cidadania, e que constitui o documento curricular de referência para a componente curricular de “Cidadania e Desenvolvimento”, a implementar obrigatoriamente em toda a escolaridade obrigatória, conforme o obriga o Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho (documento legal definidor dos currículos dos ensino básico e secundário).

2. A “Cidadania e Desenvolvimento” no Decreto-Lei n.º 55/2018

Logo no seu preâmbulo, o novo documento normativo definidor do currículo do ensino básico e secundário prescreve que a reforma em curso se constitui como um desafio às “escolas, conferindo-lhes autonomia para, em diálogo com os alunos, as famílias e com a comunidade, poderem […] Implementar a componente de Cidadania e Desenvolvimento, enquanto área de trabalho presente nas diferentes ofertas educativas e formativas, com vista ao exercício da cidadania ativa, de participação democrática, em contextos interculturais de partilha e colaboração e de confronto de ideias sobre matérias da atualidade”. Já na componente normativa mais articuladora do mesmo Decreto-Lei, mas ainda numa fase de “clarificação” conceptual, define-se a “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania” como uma “estratégia que visa o desenvolvimento de competências para uma cultura de democracia e aprendizagens com impacto na atitude cívica individual, no relacionamento interpessoal e no relacionamento social e intercultural, através da componente de Cidadania e Desenvolvimento (Artigo 3.º, alínea g).

Estabelece-se que “A componente de currículo de Cidadania e Desenvolvimento, integrando as matrizes de todas as ofertas educativas e formativas: a) Constitui -se como uma área de trabalho transversal, de articulação disciplinar, com abordagem de natureza interdisciplinar” (artigo 15.º, n.º3, alínea a, sublinhado nosso). Quer isto dizer que CD é uma área curricular transversal (que atravessa todo o currículo), que essa transversalidade se articula disciplinarmente (organizando-se através de uma disciplina, portanto) e que a sua abordagem temática é de natureza interdisciplinar, i.e., convocando saberes disciplinares múltiplos.

Aqui se estabelece a primeira ambivalência da CD, que se institui, em particular nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico, como uma componente do currículo simultaneamente transversal e disciplinar, com a criação da disciplina de CD nas respetivas matrizes curriculares, ainda que sem tempo curricular diretamente adscrito, o que implica a necessidade de ratear o tempo curricular por mais uma disciplina ou responsabilidade docentes, com a implicação necessária da sua diminuição em algumas delas.  

Mas não é assim em todos os níveis de ensino. A presença de CD no currículo do 1.º ciclo materializa-se através de “componentes de integração curricular transversal”. O mesmo acontece, aliás, para o Ensino Secundário, onde a transversalidade é regra, com opção de criação de componentes curriculares disciplinares autónomas, a prática de coadjuvação no âmbito de uma disciplina ou o funcionamento em justaposição com outra disciplina, desde que com recurso à nova possibilidade de disposição de 0 a 25% do tempo curricular de cada disciplina para eventual afetação a outra ou outras disciplinas, quer dizer, desde que retirando tempo ao currículo de outras disciplinas da matriz curricular base, para afetar a CD.

Em síntese: a CD será transversal no primeiro ciclo, disciplinar no 2.º e 3.º ciclos (embora num “horizonte de transversalidade”) e transversal no ensino secundário, embora também aí podendo ser de natureza disciplinar, desde que afetando tempo de outras componentes curriculares, até ao limite de 25%.

Quanto à natureza da avaliação/classificação, a disciplina de CD deverá ser avaliada/classificada, nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico, como as outras disciplinas, formativamente (de modo continuado) e sumativamente (no fim de cada período letivo, que pode ser trimestral ou semestral), embora no ensino secundário, quando disciplinarizada, já não se exija esse tipo de avaliação/classificação sumativa.

No plano da organização nas escolas, o documento em análise prescreve que a abordagem curricular da Educação para a Cidadania se deve fazer a dois níveis: ao nível de cada turma e ao nível global da escola. Cada turma deverá, no âmbito do seu Plano Curricular, “definir os domínios a trabalhar e [d]as competências a desenvolver ao longo do ano”, “enquadrados na Estratégica de Educação para a Cidadania da Escola”.

3. Análise e crítica

- O SPN considera que uma Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania é um instrumento importante para a concretização do Perfil dos alunos à saída da Escolaridade Obrigatória e da própria LBSE, quando preconiza “a formação integral dos indivíduos, nas suas dimensões humanística, literária, artística, física e desportiva, científica e tecnológica, inter-relacionando o saber e o saber fazer, a teoria e a prática, e promovendo a formação de cidadãos críticos, civicamente responsáveis e democraticamente intervenientes na vida comunitária.” Contudo, não basta definir políticas, é imprescindível criar condições para que elas se concretizem, nomeadamente garantindo o envolvimento dos professores e educadores em todas as fases do processo, adequando a matriz organizativa da escola às finalidades a atingir e disponibilizando os recursos necessários.

- Neste quadro, a primeira nota a realçar no documento orientador titulado “Estratégia Nacional de Educação Para a Cidadania” é o seu desfasamento relativamente ao atual modelo de gestão das escolas básicas e secundárias. Prescreve-se que a disciplina de CD deve estar “integrada nas políticas e práticas da escola democrática envolvendo toda a comunidade escolar”, como se o caráter tecnocrático do atual modelo, com a concentração de poderes num Diretor, se pudesse compaginar com lógicas democráticas de natureza participativa e direta por parte de professores, alunos e restantes membros da comunidade escolar. As crianças e os jovens são socializados – ou não – para os valores da democracia, da cidadania, do diálogo, da participação, através da vivência numa organização onde estão cada vez mais anos da sua vida. O SPN reafirma que a valorização da escola pública enquanto espaço de aprendizagem da vida em sociedade exige a democratização do governo das escolas. 

- Uma outra questão que nos parece relevante prende-se com a definição e organização dos domínios da Educação para a Cidadania. Na economia global dos “domínios curriculares”, parece prevalecer (embora não de modo exclusivo e permitindo, pela sua abertura semântica, leituras, interpretações e aprofundamentos variados) uma “visão” e uma conceção individualistas, em que a cidadania é vista como uma agência sobretudo singular (promoção da saúde, alimentação, exercício físico, literacia financeira e educação para o consumo, segurança rodoviária, risco, empreendedorismo, bem-estar animal, voluntariado…), não expressando a totalidade das dimensões coletiva e associativa da vida cívica essenciais à construção de uma democracia robusta e capazes de dar voz à fonte da soberania política, o povo (termo nunca referido no referencial), nas suas mais diversas matizes e nos seus universos mais particulares ou mais globais.

Bem entendido, como referido, a abertura dos temas em presença permite que sejam interpretados de modo muito variado. No entanto, a ausência de “domínios curriculares” relativos às ameaças e à construção da democracia, aos conflitos sociais, aos conflitos identitários, às transformações politicas e económicas internacionais, à construção da união europeia e à própria construção da democracia portuguesa e suas genealogias, constitui uma lacuna, sobretudo ao nível do ensino secundário (mas não só), que, podendo (e devendo) embora ser enriquecida com a autonomia profissional dos professores e das escolas, não deixa de parecer apontar para um referencial curricular de pendor liberal, apostando essencialmente numa mobilização individualista, competitiva e despolitizada dos cidadãos.

- No plano da operacionalização da componente curricular da CD, a solução concreta da disciplinarização de CD nos 2.º e 3.º ciclos levará, em muitos dos casos, a um processo de reatribuição do tempo letivo da área curricular de Ciências Sociais e Humanas, com a implicação de uma diminuição da carga letiva das disciplinas de História e Geografa (elas próprias decisivas para uma educação cívica sólida e democraticamente comprometida) ou, noutros casos, através de uma justaposição/sobreposição com a disciplina de TIC ou a afetação de responsabilidades docentes no âmbito da Direção de Turma.

A adequação à CD de um regime de avaliação de tipo sumativo (de 1 a 5), no final de cada período, afigura-se igualmente questionável, já que se trata de uma ‘disciplina’ que, tendo sobretudo natureza interdisciplinar, prática e experiencial, obriga a aferir e refletir sobre comportamentos, valores, expectativas, possibilidades e conflitos que toda a aprendizagem e experiência cívica, e também das crianças e jovens, comporta. A não ser que se vise medir o conhecimento e domínio proposicional de conceitos e ideias (o que transformaria a CD numa disciplina diferente do que se prescreve na “Estratégia de Educação para a Cidadania”, onde se refere expressamente que CD assenta numa “Conceção não abstrata de cidadania”), a classificação dos alunos de 1 a 5 revela-se problemática. Aliás, não será por acaso que se aplica um critério diferente – avaliação não sumativa - no ensino secundário, caso a escola opte por ter CD como uma disciplina autónoma.

Quanto à presença da componente curricular de CD no ensino secundário, e dada a sua natureza puramente transversal, sem crédito horário suplementar para as escolas visando o seu desenvolvimento, não irão as boas intenções do projeto ficar-se por aí mesmo, dada a crescente exiguidade do tempo curricular disponível face aos crescentes desafios pedagógicos, e muito particularmente naqueles anos de escolaridade em que a atenção dos alunos e professores e concentram, no essencial, na avaliação externa?        

- De salientar ainda que a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania recomenda “que o desenvolvimento em cada escola da Estratégia de Educação para a Cidadania possa constituir uma das vertentes da sua avaliação externa” (sublinhado do documento), o que quer dizer que, a consumar-se esta recomendação no novo referencial, em vias de conclusão, de avaliação externa das escolas, o desenvolvimento da Estratégia de Educação para a Cidadania acabará por, mesmo sem recursos e com todas as debilidades apontadas, ter implicações na configuração da organização interna das escolas e na sua imagem externa, com repercussões diretas nas suas, e dos professores, lógicas pedagógicas e de ação.  

- Regista-se a recomendação de que cada escola tenha um docente coordenador da “Estratégia de Educação para a Cidadania na Escola”, membro do Conselho Pedagógico, capaz de fazer a articulação entre os professores da disciplina, o Projeto Educativo da Escola/Agrupamento, os vários parceiros internos e externos e a Equipa Nacional de Educação para a Cidadania, bem assim como a obrigação de “apresentar um relatório anual que deve incluir as necessidades de formação contínua de docentes neste domínio”, docente de que se chega a desenhar um apertado perfil pessoal e profissional. No entanto, contra o que seria de esperar tendo em conta a exigência daquele lugar de coordenação, em nenhum momento é referida a possibilidade de a essas funções ser afetado tempo letivo específico para que possam ser cabalmente desenvolvidas, como se os professores fossem, cada vez mais, investidos de todos os poderes, todo o tempo e todas as capacidades, sem a devida ponderação do tempo necessário para o desenvolvimento das suas atividades, mais uma vez os sobrecarregando de tarefas e funções, como se o seu horário de trabalho fosse desmedidamente elástico.

- Apesar de ser proposto o lançamento de um programa de formação a desenvolver através dos CFAEs, quer para docentes, quer para não docentes, sugerindo-se ainda que a Educação para a Cidadania passe a constituir uma componente da formação inicial de professores, na verdade é que ciclo de formação já previsto para Cidadania e Desenvolvimento e lançado pela DGE para o início do ano letivo, operacionalizado pelos Centros de Formação de Associação de Escolas, apenas abrange um docente por Agrupamento de Escolas (o docente que irá coordenar o projeto), não estando prevista qualquer outra formação para os professores que, em cada escola, operacionalizarão efetivamente a disciplina ou co campo disciplinar de Cidadania e Desenvolvimento junto dos alunos, o que pode constituir um sério constrangimento ao seu desenvolvimento.     

 

4. Conclusões

4.1. Tem-se como positivo o lançamento da uma Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, colmatando uma necessidade e um vazio estratégico da escola portuguesa.

4.2. Considera-se, contudo, negativo:

  • A introdução de (mais) uma alteração com implicações profundas na organização pedagógica e no funcionamento das escolas, sem o imprescindível e atempado envolvimento dos professores e educadores nesse processo.
  • O não reconhecimento da necessidade de alteração do atual regime de autonomia e gestão das escolas, como se uma escola burocrática e autoritária pudesse conviver com a autonomia, o trabalho cooperativo, as solidariedades e as complementaridades inerentes à concretização, de facto e não apenas no papel, de uma área de Cidadania e Desenvolvimento.
  • O pendor excessivamente individualista, liberal e competitivo do referencial curricular, constituído por uma diversidade de elementos desarticulados, em detrimento de “domínios curriculares” relevantes sobe a dimensão política da CD, ao nível dos direitos fundamentais e de como podem ser exercidos, da participação cívica, do associativismo, do viver em democracia.
  • A existência de opções incongruentes e não fundamentadas quer quanto à disciplinarização da Cidadania e Desenvolvimento e à sua expressão no tempo curricular letivo, quer quanto à submissão a um regime de avaliação de tipo sumativo.
  • A ausência de condições e recursos para o desenvolvimento desta estratégia, nomeadamente ao nível do reforço de horas para tarefas de coordenação, trabalho cooperativo e iniciativas de formação, entre outras, sem aumentar a carga horária dos professores, já hoje incomportável. Nesta como noutras áreas, ignorar a imprescindibilidade um conjunto de condições mínimas para a concretização das decisões tomadas arrisca-se a comprometer de forma decisiva o desenvolvimento e o potencial das mudanças pretendidas.

 

Direção do SPN
30 de outubro de 2018

 

Anexos

PARECER EDUCAÇÃO E CIDADANIA - PROPOSTA FINAL

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