ESI — Balanço preliminar e propostas para o próximo ano letivo

6 de agosto de 2020

Covid-19 no ensino superior e investigação científica

Balanço preliminar e propostas para o próximo ano letivo

 

A conjugação de uma economia frágil, agrilhoada a compromissos que absorvem uma fatia desproporcionada dos recursos públicos, com um desinvestimento continuado nas funções sociais do Estado, que lhe retira instrumentos fundamentais para uma intervenção adequada e compromete a sua capacidade de resposta, levou a que a resposta à crise tenha sido particularmente desafiante. Evidentemente, não se trata de qualquer fatalismo ou inevitabilidade, mas sim de uma consequência direta das escolhas políticas que, ao longo do tempo, foram sendo tomadas.

Em termos gerais, no ensino superior, a Covid-19 teve impactos a dois níveis distintos que devem, ainda assim, ser vistos de forma interligada.

  • Por um lado, a pandemia contribuiu para tornar mais evidente, os vários problemas existentes no ensino superior e na ciência, destacando-se o seu subfinanciamento e a precariedade laboral. Problemas deste há muito denunciados pela Fenprof e para os quais apresentou propostas fundamentadas com vista à sua resolução, como demonstra a ação desenvolvida no âmbito do emprego científico e do PREVPAP.
  • Por outro lado, a pandemia promoveu uma intensificação e/ou aceleração de más práticas e tendências, destacando-se o trabalho a distância, que – pelo modo apressado, precipitado e manifestamente inadequado como tem vindo a ser implementado em muitas instituições de ensino superior e investigação científica – tem contribuído para colocar docentes e investigadores em situações de sobretrabalho, a que se alia a ausência da separação funcional entre trabalho e vida privada, gerando uma situação altamente confusa, cujas consequências para a saúde física e mental são inegáveis.

Neste cenário, encontra-se ameaçada a ideia de ensino superior, porquanto este implica, requer e exige a presença, ao longo do tempo, num mesmo ambiente, de docentes e estudantes. Para a Fenprof é muito claro que o “ensino de emergência” não pode instituir-se enquanto norma e, assim, naturalizar-se e eternizar-se.

Ao nível da investigação científica, a pandemia foi igualmente disruptiva. Ao gravíssimo problema de precariedade laboral que caracteriza a Ciência portuguesa, cuja resolução teima em ser adiada pelos responsáveis políticos, acrescentam-se, agora, perturbações associadas à pandemia com consequências muito nefastas para o trabalho desenvolvido pelos investigadores.

Destaca-se, a este nível, a manifesta inoperância do MCTES e incapacidade da FCT, que atingiram níveis particularmente preocupantes para lidar de forma adequada com os problemas enfrentados pela comunidade científica, de uma forma que não insulte nem ofenda a dignidade dos investigadores e o valor do trabalho que desenvolvem.

No que toca ao MCTES, depois de um prolongado silêncio, surgiu uma resposta que não foi devidamente consertada com as IES, gerando grande confusão, incerteza e insegurança nos docentes, investigadores, funcionários não docentes e estudantes. Entretanto, as IES, muitas delas fazendo tábua rasa da sua própria democracia interna, profundamente comprometidas desde a entrada em vigor do RJIES, foram emitindo normas orientadoras que, em muitos casos, pela precipitação e falta de envolvimento da academia, acabaram por se revelar contraproducentes.

Esta opção pela falta de coordenação e visão de conjunto do MCTES, escudada na autonomia das IES, é difícil de aceitar! Parece, aliás, ter-se reforçado com as recentes declarações do ministro, que afirma que no próximo ano letivo todo o ensino será presencial quando, a maior parte das instituições já definiu planos que assentam no ensino misto.

Docentes, investigadores e estudantes já demonstraram estar à altura para fazer face a uma situação de exceção, alterando métodos de trabalho e reorganizando as suas vidas pessoais e familiares, muitas vezes com enorme sacrifício pessoal.

Na atual situação, a Fenprof considera inaceitável que não tenham existido quaisquer medidas tomadas pela tutela para aliviar os encargos dos estudantes e das suas famílias, nomeadamente no que toca ao pagamento das propinas. Como é sabido, as famílias portuguesas já se encontram entre aquelas que, ao nível europeu, são mais penalizadas com estas despesas.

 

Propostas da Fenprof para o próximo ano letivo

O ensino superior e a investigação científica, pela sua natureza, devem desempenhar um papel central no modo como a sociedade reage, se adapta e enfrenta a pandemia. Por esse motivo, a Fenprof considera que é fundamental preparar adequadamente o próximo ano letivo, envolvendo docentes, investigadores, funcionários não docentes e estudantes, para que, na eventualidade de nos vermos confrontados com uma segunda vaga de Covid-19 – possibilidade não descartada pelas autoridades de saúde pública –, o sistema possa dar uma resposta mais coordenada e articulada, mais democrática e que respeite os direitos laborais e o bem-estar daqueles que, com o seu trabalho diário, contribuem para o desenvolvimento do ensino superior e da ciência.

Considerando a possibilidade de, no próximo letivo, se enfrentar uma nova vaga da pandemia, a Fenprof considera que devem ser tomadas medidas preventivas que permitam agir com celeridade, confiança e assertividade, sem precipitações institucionais nem retrocesso ou atropelo de direitos fundamentais. E a melhor forma de ultrapassar alguns dos desafios trazidos pela pandemia passa por trazer para cima da mesa reivindicações que, não sendo novas – e dado que os problemas não só não foram resolvidos como até, em alguns casos, se agudizaram –, ganham uma atualidade renovada.

Para a Fenprof, a melhor forma de enfrentar o futuro, adequada e responsavelmente, é procurar combinar soluções estruturais com outras de natureza mais circunstancial.

Assim, à luz do balanço feito anteriormente, as propostas da Fenprof para o próximo ano letivo são as seguintes:

  • Garantir, por parte do MCTES, e enquanto se mantiver a sua necessidade, as condições de proteção sanitária definidas pelos especialistas de saúde pública no contexto da pandemia, bem como o seu financiamento adequado, assumindo particular importância a este respeito a necessidade de adaptação ao atual contexto das instalações das IES e o seu modo de funcionamento.
  • Preservar os mecanismos, as práticas e a lógica prevalecente no desenho da distribuição do serviço docente anteriores à pandemia, respeitando os estatutos de carreira, designadamente no que toca ao respeito escrupuloso pela carga letiva, tendo em conta que a pandemia poderá obrigar a que, no próximo ano letivo, continue a ter de se recorrer à atividade não presencial, numa lógica complementar e supletiva.
  • Implementar um plano, financiado pelo Orçamento do Estado, de abertura de concursos para a base das carreiras, de acordo com as necessidades estruturais das IES, destacando-se aqui o sobre trabalho que já hoje afeta muitos docentes, e reforçando também a potencial capacidade de resposta das instituições às exigências de distanciamento físico e desdobramento de turmas que o ensino presencial num quadro de pandemia poderá implicar. Salienta-se aqui a necessidade de considerar, na componente letiva do trabalho docente, não apenas o tempo de contacto com os alunos, mas também o tempo consumido na respetiva preparação e seguimento, tornando mais realista o tempo considerado disponível para a investigação e o serviço à comunidade.
  • Rever os regulamentos de avaliação de desempenho docente com base em critérios mínimos universais para todas as IES, de modo a minimizar os efeitos negativos causados pela pandemia Covid-19, ao mesmo tempo que se impedem situações de discriminação negativa dos docentes do Ensino Superior face a outras carreiras da Administração Pública.
  • Iniciar de imediato um processo de avaliação do RJIES, com vista à sua revisão, ouvindo os diversos membros da comunidade académica, no sentido de, entre outras alterações, se conseguir a implementação de uma gestão mais democrática, transparente e colegial das IES, aspeto ainda mais posto em causa no quadro da atual pandemia.
  • Promover o desenvolvimento profissional dos docentes mediante o intercâmbio com os pares da sua e de outras instituições (que as professional networks proporcionam e facilitam) e mediante projetos e ações de formação continuada estrategicamente pensados para responder a problemas sentidos pelos professores, na sua ação concreta, tendo em conta a diversidade dos estudantes e a natureza específica dos diferentes campos do saber académico.
  • Prorrogar todas as bolsas (diretamente financiadas pela FCT e restantes) e todos os contratos a termo de investigação, por um período equivalente à duração das condições que obstaculizam o normal desenvolvimento do trabalho de pesquisa e, simultaneamente, adiar os prazos previstos para avaliações intercalares ou de renovação, por igual período.
  • Rever o modelo de funcionamento da FCT, cujas debilidades ficaram ainda mais à vista durante a pandemia, tornando-o mais previsível e transparente, nomeadamente através da divulgação e cumprimento de um calendário de concursos a abrir ao longo de um período de cinco anos, transparente e autónomo.
  • Revogar o Estatuto do Bolseiro de Investigação e integração na carreira dos investigadores contratados e dos bolseiros que exercem funções de forma continuada no Sistema Científico e Tecnológico Nacional, contribuindo assim para a valorização da carreira de investigação científica.
  • Reforçar as medidas estruturais de apoio aos estudantes do Ensino Superior, sobretudo aqueles que ingressam pela primeira vez, considerando o modo como a pandemia veio acentuar as desigualdades sociais e económicas que já constituíam um entrave ao acesso e frequência dos estudantes no Ensino Superior. Neste sentido, é particularmente importante dar continuidade ao processo de redução do custo das propinas até à gratuitidade da frequência de todos os níveis de Ensino, como dispõe a Constituição da República, e criar planos de acolhimento adaptados às necessidades daqueles que tomam contacto com o Ensino Superior pela primeira vez.

A Fenprof considera que, contrariamente àquilo que tem sido a tendência predominante, este é o momento de afirmar o valor social do trabalho desenvolvimento por todos aqueles que integram o ensino superior e a ciência em Portugal. O desinvestimento que, ao longo de vários anos, tem caracterizado este setor não pode continuar, sob risco de se atingirem situações absolutamente insustentáveis do ponto de vista social e humano, se é que já não se chegou a este ponto.

Para a Fenprof, importa sublinhar, no que toca à pandemia, que, mesmo considerando a necessidade de levar a cabo um processo de planificação rigoroso e democrático que considere diferentes cenários possíveis, não se pode normalizar uma situação que é, efetivamente, de exceção.

 

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