FCT atropela os direitos das mulheres cientistas (André Carmo)

Público, 25 de fevereiro de 2021

A desigualdade de género não é novidade. Em Portugal, as mulheres auferem salários tendencialmente mais baixos para o desempenho das mesmas funções, a maior parte do trabalho doméstico – não remunerado – é assegurado por mulheres, a sua participação na sociedade e na economia, quando medida, por exemplo, através do acesso a cargos de chefia e liderança, encontra-se muito obstaculizada. Os exemplos de discriminação e desigualdade, de opressão e subalternização, na sua forma mais ostensiva e brutal ou assumindo uma configuração mais subtil que, não deixando de ser igualmente brutal, é mais insidiosa e perversa, atravessam a nossa sociedade de alto a baixo. O resultado é conhecido: em 2020, e apesar dos ligeiros progressos verificados desde 2015, Portugal encontrava-se abaixo da média europeia no Índice de Igualdade de Género.

Não surpreende, pois, que também no domínio da investigação científica a desigualdade de género se manifeste de mil e uma maneiras. Por exemplo, em Primos Gémeos, Triângulos Curvos e outras histórias da Matemática (2014), Jorge Buescu, refletindo sobre os motivos pelos quais, até 2014, a Medalha Fields, espécie de Prémio Nobel da Matemática que não pode ser atribuído a pessoas com mais de 40 anos de idade, nunca tinha sido conquistada por uma mulher, deixa pouca margem para dúvidas. Nas suas próprias palavras, “a concentração total em objetos matemáticos estratosféricos não é a atividade mais compatível com enjoos e ecografias, amamentação e cólicas, mudanças de fraldas e noites em branco. E, apesar dos muitos avanços sociais e civilizacionais a registar quanto a este ponto, é um facto que o homem médio não partilha totalmente as tarefas da vida familiar com a mulher, sendo esta em geral mais sobrecarregada” (pp. 58-59).

O estudo O Trabalho Científico em Portugal: Precariedade e Burnout, promovido pela FENPROF sob coordenação científica de Ana Ferreira, investigadora do CICS.NOVA, oferece-nos dados igualmente esclarecedores. Ficámos a saber, se é que não o sabíamos já, que a ausência de oportunidades de carreira, dentro e fora do Sistema Científico e Tecnológico Nacional, a incerteza e a precariedade associadas às trajetórias laborais mais comuns em ciência obrigam ao adiamento de projetos de vida, nomeadamente, da parentalidade. O número médio de filhos das mulheres inquiridas em idade fértil foi de 0,70, cerca de metade do valor nacional para 2019 (1,42). Divididas entre a investigação científica e a família, e maioritariamente com jornadas de trabalho superiores a 40 horas semanais, as cientistas não têm uma vida fácil.

A pandemia mudou tudo. Para pior. Em As implicações do teletrabalho na vida das mulheres e das famílias (18/02/2021), a Comissão para a Igualdade entre Homens e Mulheres da CGTP-IN não deixa dúvidas: “(…) Aumentam os ritmos de trabalho e a pressão para a desregulação dos horários (…) faltam condições habitacionais e socioeconómicas (…) acentuam-se as situações de stress, assédio laboral e burnout/esgotamento das mulheres e homens que se encontram em teletrabalho.” Neste contexto, obviamente, a conciliação entre vida familiar e vida laboral é mais desafiante do que alguma vez foi.

Na ciência a situação não é melhor e a pandemia tem sido particularmente lesiva para as mulheres. Por exemplo, têm publicado menos artigos científicos na qualidade de autoras principais. Em vez disso, ocupam ainda mais tempo que dantes no desempenho de múltiplas tarefas de gestão familiar e doméstica. Sobretudo para aquelas que têm crianças e jovens a cargo, que sempre foram as mais penalizadas, o recente encerramento das escolas em Portugal, acompanhado da perda das redes de apoio e suporte oferecidas por muitos familiares mais velhos, é mais um problema com que têm de lidar.

A realidade é que o trabalho científico e académico, assente no número de publicações e na capacidade de obter financiamento para projetos de investigação, parece ser incompatível com a vida familiar. E isso é inaceitável. Uma sociedade decente, como aquela que queremos construir para nós próprios e legar às futuras gerações, não pode aceitar uma tal condição existencial como se de uma fatalidade se tratasse. Para inverter esta situação, é importante que todos façamos o nosso trabalho. A começar pelas instituições que maiores responsabilidades têm no funcionamento da ciência em Portugal. Tais como a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Infelizmente, não é isso que acontece.

Numa atitude de obstinada intransigência, e fazendo tábua rasa dos apelos que foram sendo feitos por membros da comunidade científica, por organizações representativas deste setor e por alguns partidos políticos, a FCT decidiu não adiar os prazos de apresentação de candidaturas para os grandes concursos anuais (projetos de IC&DT, concursos CEEC individual e institucional e concurso para bolsas de doutoramento).

Numa nota emitida a 15 de fevereiro, a FCT informa que vai cumprir os prazos previstos, algo “imprescindível para garantir as condições de normalidade no cumprimento da política científica e garantir que o sistema de financiamento à ciência mantém a regularidade temporal e a previsibilidade que a própria comunidade científica vem solicitand”. Acrescentando o insulto à injúria, a FCT faz uma escolha que prejudica, acima de tudo, as mulheres cientistas que, hoje, enfrentam as mais duras condições de trabalho das suas vidas.

É certo que, para alguns, esta é a decisão correta. Quando, em 2020, a FCT adiou os prazos dos concursos de projetos de IC&DT e bolsa de doutoramento, houve manifestações de desagradado por parte de alguns cientistas. Afinal, se eles foram capazes, com empenho, determinação e sacrifício, porque devem ser prejudicados por causa da incapacidade demonstrada por aqueles que não o conseguiram fazer?

Não tenhamos ilusões, a canibalização do pensamento pelo social-darwinismo predominante encontra na ciência um terreno muito fértil. Mas este é um caminho sem futuro. Todas e todos o sabemos. A FCT também o sabe. Mas já mostrou, no passado recente, que pode atuar de uma forma mais justa e menos lesiva dos direitos de quem faz a comunidade científica ser o que hoje é. Na luta contra a desigualdade de género, seria lamentável que a FCT não estivesse à altura das suas responsabilidades.

Foto: Gonçalo Dias

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