Os professores à distância

18 de fevereiro de 2021

"Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe, no Jornal de Notícias (Edição de 8 de fevereiro de 2019)


Esperar que existam nas casas dos professores condições físicas e familiares perfeitas para que se preparem e ministrem as aulas é não querer saber do que lhes foi feito nos últimos dez a quinze anos.

A partir de amanhã regressa a escola à distância para martírio de professores, alunos e famílias. É cada vez mais clara a tragédia para esta geração de alunos, a braços com o sobressalto da pandemia, que gera ansiedade e medo, desestabilizando e criando dificuldade em traçar objectivos e quaisquer planificações. As crianças e os jovens de hoje adiam-se em tudo, indefinidos cada vez mais, não só perdendo o acompanhamento científico que se convenciona mas, talvez mais grave, perigando sua maturação social, agora ainda exclusivamente entregues à gestão dos sonhos a partir de uma razão virtual.

Creio que o tempo que já temos deste desafio será suficiente para deixar uma marca violenta nas pessoas cujos espíritos ainda se formam. E a partir da complexa perturbação do ensino podemos esperar apenas o pior. Para qualquer um de nós se torna cristalino como, acossados que estamos, se nos faz insuportável focar. Nos nossos trabalhos, tantos que até fazem aquilo com que sempre sonharam, vemo-nos distraídos constantemente, a todo o tempo fazendo do vírus um ataque mental, uma intrusão no pensamento. Fácil, pois, é de entender como haverá de ser horroroso para a inquietude das crianças e dos jovens procurar abstrair da intensa realidade para atentar na matemática, na história dos povos que buscaram caminhos marítimos ou na composição das rochas. Estudar, em tempos de pandemia, é uma competição levantada a uma potência elevada. É uma solicitação meio heróica e um pouco obscena.

Se à linear dificuldade juntarmos a improvisada telescola, então podemos estar a entrar na lógica do engodo. Não estou nada confiante que isto seja bem sucedido, as mais das vezes haverá de ser um placebo para entreter e empurrar as falhas com a barriga. Acho bonito que seja pedido aos professores um espírito de missão, e penso até que assim devemos estar todos. No entanto, que se imponha aos professores o patrocínio da telescola, esperando que seja com os seus computadores pessoais, à custa dos seus meios, que se façam as aulas, já não é pacífico. Mais ainda porque os professores estão longe de auferir de condições de vida exemplares, há anos vendo os seus salários limitados, encurtados, na produção de um deliberado enfraquecimento da escola pública. Esperar que existam nas casas dos professores condições físicas e familiares perfeitas para que se preparem e ministrem as aulas é não querer saber do que lhes foi feito nos últimos dez a quinze anos. Perseguidos e humilhados por sucessivos governos, com a escola pública a ser vergada perante as ganas de se impôr como inevitável o ensino privado, os professores, que são os grandes guias da humanidade, expondo, esclarecendo e nutrindo o que cada criança traz apenas em potência, são chamados bastante à deriva para acudirem uma tragédia que não se está a conseguir minimizar.

Toda a minha vida combati pelos professores e pela importante existência de uma escola pública qualificada e universal. Isso só vai poder acontecer quando as escolas não forem tratadas como vazadouros de crianças boicotadas desde o início, como hordas de futuros miseráveis à mercê das elites sempre garantidas. Quero, sim, ver as escolas respeitadas no papel fundamental de distribuírem por todos a fortuna da autoestima, do conhecimento e da oportunidade. Só isso criará uma reforma absoluta, uma revisão completa da sociedade protegendo-a da pobreza dos bens e, mais ainda, da ignorância e da resignação servil.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)

 

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