As carreiras e a nova lei

A Administração Pública tem vindo a sofrer grandes alterações na legislação que a rege, visando a implantação da chamada "nova gestão pública" - que mais não é do que a aproximação da legislação da função pública ao direito privado -  bem como a concretização da redução dos encargos com o pessoal e a consagração de mecanismos que permitam o seu despedimento.

Perante este turbilhão legislativo, muitos colegas, legitimamente preocupados com o seu futuro - pois já esperam o pior - se têm interrogado sobre se:

1. A precariedade vai aumentar?

2. A nomeação definitiva vai desaparecer?

3. A dedicação exclusiva vai ser posta em causa?

4. A progressão nos escalões vai manter-se bloqueada?

5. As promoções vão ser ainda mais limitadas?

6. As carreiras docentes e de investigação irão seguir as regras das gerais?

Procuramos, de seguida, contribuir para a resposta a estas questões, de acordo com a interpretação que fazemos dos diplomas já publicados e dos projectos legislativos conhecidos. Contudo, as respostas definitivas dependerão largamente daquilo que os docentes e investigadores conseguirem alcançar no processo de negociação com o Governo, pois muita coisa se encontra ainda em aberto.

1. A precariedade vai aumentar?

A passagem do vínculo de todos os trabalhadores que não exercem funções de soberania, autoridade ou representação externa do Estado - a maioria - para a figura de "contratos de trabalho em funções públicas" (CTFP), imposta pela Lei nº 12-A/2008 ("lei dos vínculos"), visa permitir, nomeadamente, que se lhes passe a aplicar o despedimento por extinção do posto de trabalho e o despedimento colectivo.

No entanto, aos que já se encontrem nomeados definitivamente, a lei mantém-lhes um regime, quanto à cessação do contrato de trabalho, idêntico ao que se aplica aos trabalhadores que permanecerão com nomeação. Isto é, não lhes será aplicável o despedimento por extinção do posto de trabalho, nem o despedimento colectivo.

Entretanto, podendo os CTFP ser celebrados por tempo indeterminado, sendo o recurso a contratos a termo certo limitado a situações de excepção, ao contrário do que sucede nas carreiras actuais, há margem para se conseguir a passagem de muitos dos contratos administrativos de provimento, que agora têm prazos de vigência limitados, para contratos por tempo indeterminado. Estarão neste caso muitos docentes que foram impropriamente contratados como convidados ou equiparados, e que se encontram há largos anos a suprir necessidades permanentes, em regime de tempo integral e, até, de dedicação exclusiva. Encontra-se aqui um importante campo de acção colectiva em favor de um aumento da estabilidade de emprego nas carreiras.

Por outro lado, a lei admite que, nos casos em que o trabalhador se encontre em regime experimental (noção que pode e deve ser estendida aos docentes em formação e àqueles que se encontram com provimento provisório), os contratos por tempo indeterminado venham a ter as garantias reconhecidas pela lei aos que hoje já têm nomeação definitiva. É o caso dos assistentes estagiários, no universitário, e dos assistentes e professores de nomeação provisória, tanto no universitário, como no politécnico.

Quanto ao resto, os contratos de trabalho em funções públicas reger-se-ão pelo futuro Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas que seguirá, no essencial, o disposto no Código do Trabalho para a figura do Contrato Individual de Trabalho que, já antes desta lei, vigorava na Administração Pública.

Como adiante se esclarece, as carreiras revistas poderão reflectir especificidades do ensino superior e da investigação no que se refere ao estatuto profissional dos docentes e investigadores, no âmbito do CTFP. O busílis estará na possibilidade de o Governo pretender interpretar à sua maneira e de modo negativo para a estabilidade profissional dos docentes tais especificidades. Há que estar atento e fazer tudo para o impedir.

Existe, por exemplo, no âmbito da futura revisão das carreiras, uma situação particularmente preocupante, que se refere sobretudo aos assistentes universitários e, em geral, a todos quantos, pelo actual ECDU, têm o direito a transitar para a categoria de professor auxiliar logo após a conclusão do doutoramento. O Ministro anunciou aos reitores que estava na disposição de não reconhecer na revisão das carreiras aquele direito, o que é inaceitável face às expectativas que foram criadas a estes docentes.

2. A nomeação definitiva vai desaparecer?

A nomeação definitiva, como hoje se processa, continuará sem alteração até que as carreiras sejam revistas. A partir daí, corresponderá à obtenção de um CTFP por tempo indeterminado, nas condições que venham a ser previstas na revisão dos estatutos das carreiras.

É de notar que esta figura, com a sua designação anglo-saxónica de "tenure", encontra-se referida no artº 50º do RJIES (Lei nº 62/2008) a que é dado o título de "estabilidade do corpo docente e de investigação", da seguinte forma: "a fim de garantir a sua autonomia científica e pedagógica, as instituições de ensino superior devem dispor de um quadro permanente de professores e investigadores beneficiários de um estatuto reforçado de estabilidade no emprego (tenure), com a dimensão e nos termos estabelecidos nos estatutos das carreiras docentes e de investigação científica".

Remete-se, assim, para os estatutos das carreiras a magna questão da dimensão deste quadro permanente, mas também a passagem a esse "quadro" de muitos dos actuais docentes que dele se encontram afastados.

Justificar-se-á, ainda, atendendo à importância da liberdade académica para o cabal desempenho das missões do ensino superior e da investigação, que o referido "estatuto reforçado de estabilidade de emprego" implique garantias superiores às reconhecidas aos CTFP por tempo indeterminado, no que se refere, nomeadamente, ao não despedimento por razões não imputáveis ao trabalhador e a restrições à aplicação da legislação sobre mobilidade especial.

Esta questão da nomeação definitiva, por ser passível de utilização perversa para conseguir o emagrecimento dos corpos docentes e por ser uma condição essencial para assegurar o exercício efectivo da liberdade académica e da liberdade de opinião, é de importância crucial para a situação profissional dos docentes e investigadores a que estes terão que prestar grande atenção, pois algumas alterações significativas poderão vir a ser propostas pelo Governo.

3. A dedicação exclusiva vai ser posta em causa?

Nada, no que se refere à legislação aprovada ou cujo projecto se conheça, põe em causa a continuidade da existência do regime de dedicação exclusiva. Antes pelo contrário: o RJIES, publicado em Setembro último, tem um artigo - o 90º - designado "dedicação exclusiva" que menciona esse regime como sendo o exigido para os cargos de reitor e de presidente.

Poderá haver, é claro, a intenção por parte do Governo de modificar o estatuto da dedicação exclusiva, no entanto, tal não decorre da legislação aprovada. A questão está em saber se, nesse caso, tal como no caso da negação de direitos aos assistentes universitários, o Governo vai ter condições para o impor. Tal vai depender muito dos docentes e dos investigadores.

4. A progressão nos escalões vai manter-se bloqueada?

A progressão nos escalões, que esteve "congelada" entre 1 de Setembro de 2005 e 31 de Dezembro de 2007, passou a estar dependente de uma avaliação de desempenho que as actuais carreiras docentes do ensino superior e da investigação científica não prevêem. Esta questão apenas será efectivamente resolvida quando aquelas carreiras forem revistas, apesar da contagem do tempo, para efeitos das "mudanças de posicionamento remuneratório" (na nova terminologia), se ter reiniciado em 1/1/2008.

Entretanto, por força da "lei dos vínculos", as escalas dos índices remuneratórios correspondentes a cada categoria terão que sofrer alterações significativas, bem como terá que ser aprovado um sistema de avaliação do desempenho e terá que ser definida a forma como ele condicionará as mudanças de índice salarial. Da mesma forma, os prémios de desempenho, previstos na lei, encontram-se dependentes destes instrumentos.

A acreditar nas intenções do Ministro, transmitidas aos sindicatos, as futuras carreiras deixarão de ter as categorias de assistente. Assim, mantendo-se o actual elenco das categorias de professores e de investigadores, no caso dos docentes universitários e dos investigadores, as carreiras ficariam com 3 categorias, fixando a lei que à categoria inferior corresponderá um número mínimo de 8 posições remuneratórias e, às categorias sucessivamente superiores, de 5 e de 2. Já no caso do politécnico, a carreira ficaria com apenas 2 categorias, sendo de 8 o nº mínimo de posições para a categoria inferior e de 4 para categoria superior.

Em termos remuneratórios, a diferença entre as posições sucessivas deve ir, de acordo com a lei, decrescendo à medida que estas se tornam superiores. Não poderá haver sobreposição dos níveis remuneratórios relativos a posições de diferentes categorias, podendo apenas, excepcionalmente, haver coincidência entre a última posição de uma categoria e a primeira da seguinte.

Dado que a mudança de posição remuneratória vai ficar dependente de uma avaliação de desempenho, muitas questões se colocam, tais como: Que instrumentos, parâmetros e níveis de classificação se aplicarão? Que instância será responsável pela avaliação? Qual a periodicidade desta avaliação? Que requisitos, nomeadamente de classificação e de tempo de serviço, se exigirão para mudar para a posição seguinte? Quantas serão as posições remuneratórias, de cada categoria, e quais serão os respectivos níveis? Que perspectivas de progressão serão dadas aos que hoje estão colocados no último escalão da sua categoria? Como vai ser regulamentada a atribuição dos "prémios de desempenho"?

5. As promoções vão ser ainda mais limitadas?

Os concursos podem continuar a fazer-se como até aqui, desde que se concluam até à entrada em vigor do novo Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, que se prevê para1/1/2009. Serão os novos estatutos de carreira que irão regular os futuros "procedimentos concursais" destinados ao preenchimento de "postos de trabalho" previstos nos "mapas de pessoal" que substituíram os quadros de pessoal.

Esta substituição dos quadros por mapas, estreitamente associados aos orçamentos, ao mesmo tempo que retira margem de manobra para a abertura de concursos nas instituições com muitas vagas nos quadros e pouco dinheiro (que em qualquer caso tinham grandes dificuldades em os abrir) pode vir a desobstruir o caminho às promoções nas instituições com os quadros preenchidos, mas com alguma disponibilidade orçamental, uma vez que o RJIES atribui às instituições capacidade para distribuir as vagas pelas categorias, embora sujeita a regras gerais que o Ministro pode fixar por despacho.

Só a prática, o nível do financiamento e o comportamento do Governo irão determinar o que se irá passar neste domínio das mudanças de categoria. Mas tal irá também depender muito da pressão que os docentes e os investigadores conseguirem exercer para que sejam criadas as necessárias oportunidades de promoção.

Note-se, porém, que a forma como se desenha a estrutura das posições remuneratórias por categoria, com um número elevado na categoria inferior e um número sucessivamente mais pequeno nas superiores, mostra que haverá a intenção de limitar o mais possível as promoções e de alargar o período de permanência nas categorias inferiores das carreiras.

Colocam-se, assim, várias questões: Como será garantido o direito à carreira, após a conversão dos quadros em mapas de pessoal, imposta pela lei? Que mecanismo poderá substituir as expectativas de promoção nas carreiras (infelizmente muitas vezes goradas pela asfixia financeira) que a existência de "vagas" nos quadros ainda assim, pelo menos psicologicamente, fornecia? Em suma: Ir-se-á concretizar a tão propalada avaliação e recompensa do mérito, que a prática tem demonstrado ser quase inexistente?

6. As carreiras docentes e de investigação irão seguir as regras das gerais?

Os docentes e os investigadores serão integrados em carreiras especiais que poderão dispor de forma diferente num significativo número de matérias (nº 3 do artº 81º), relativamente ao estabelecido na lei para as carreiras gerais, como atrás já se deixou entender. Entre estas, encontram-se, de acordo com a lei, as seguintes: a estruturação das carreiras; os requisitos de recrutamento; os níveis remuneratórios das posições das categorias; os suplementos remuneratórios; outros sistemas de recompensa do desempenho; sistemas adaptados e específicos de avaliação do desempenho; estatutos disciplinares especiais e o regime aplicável em matérias não reguladas pelas leis gerais.

Por tudo isto, o processo de revisão dos estatutos das actuais carreiras, será a ocasião para se fazer um debate e se mobilizarem os colegas, em torno de um conjunto muito vasto de questões da maior relevância para o futuro da sua condição profissional.

 

O Departamento do Ensino Superior e Investigação da FENPROF

28.04.2008

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