Avaliação do desempenho do pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário

PARECER

Não é possível abordar o diploma relativo à avaliação do desempenho do pessoal docente da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário sem se ter em conta a articulação entre este diploma e o Decreto-Lei nº 15 / 2007 de 19 de Janeiro, em função do qual se procedeu à alteração do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário. Na nossa opinião, este é o primeiro problema do diploma em análise, em função do qual a avaliação do desempenho docente se circunscreve a uma função subsidiária, o de instrumento de gestão da carreira dos professores, quando poderia e deveria assumir-se como um factor nuclear de uma estratégia conducente à afirmação das escolas como organizações aprendentes. Organizações estas que institucionalmente se estruturariam para favorecer a reflexividade profissional dos seus membros como dispositivo de gestão proactiva.

Nesta perspectiva, a avaliação do desempenho dos professores não poderia aspirar a ser outra coisa que não fosse a de favorecer a tomada de consciência dos percursos profissionais protagonizados pelos docentes, de forma a que estes pudessem tomar as decisões mais adequadas, quer ao nível do seu envolvimento em questões de carácter institucional, quer ao nível da actividade docente propriamente dita, tanto em termos curriculares, como em termos do trabalho de mediação didáctica que animam, como, ainda, do ponto de vista dos processos de avaliação que adoptam.

Uma primeira leitura do diploma relativo à avaliação do desempenho docente não nos conduz a concluir, de imediato, que o referido diploma impede a afirmação de uma tal função estratégica, ainda que seja necessário discutir se os objectivos da avaliação poderão ser fixados da forma como o art. 9º o faz (1) e se não somos obrigados a recusar, também, a solução burocrática que o ponto 7 que o art. 23º (2) propõe. Apesar deste conjunto de objecções, importa reconhecer, então, que não é do ponto de vista da formulação das intenções que proclama que o diploma poderá ser questionado.

Os dois problemas estruturais que afectam o documento em análise têm a ver, sobretudo, com a articulação, já referida, que se estabelece entre a avaliação do desempenho e a gestão da carreira dos professores, bem como com a estratégia de operacionalização da avaliação proposta. Se a problemática daquela articulação nos remete para o conjunto de críticas que, reiteradamente, se têm vindo a produzir acerca do Estatuto da Carreira Docente entretanto aprovado(3), a outra problemática merece da nossa parte, e neste momento, mais atenção, porque é no domínio da operacionalização da avaliação do desempenho docente e dos instrumentos propostos para a realizar que entramos numa zona de risco que pode propiciar a arbitrariedade e o nepotismo.

Ainda que se afirme, no art. 6º, que os instrumentos de registo ?são elaborados e aprovados pelo Conselho Pedagógico dos agrupamentos ou escolas não agrupadas tendo em conta as recomendações que forem formuladas pelo Conselho Científico para a Avaliação de Professores?, o que se constata é que a proposta de instrumentos que aparece em anexo ao projecto de diploma parece querer dispensar o trabalho dos Conselhos Pedagógicos e as recomendações do Conselho Científico para a Avaliação de Professores. Qual é o estatuto de cada uma das listas de verificação de comportamentos que fazem parte dessa proposta (4)? Para que servem? Porque é que não são referidas no texto do diploma? Independentemente do facto das listas em questão aparecerem de forma abusiva na proposta do diploma, o que só por si merece uma leitura negativa, importa analisar o conteúdos dessas listas e o significado das mesmas, do ponto de vista do seu impacto na reflexão e na acção que os docentes protagonizam quotidianamente nas escolas.    

Veja-se, a título de exemplo, as fichas de auto-avaliação propostas, que se assemelham mais a instrumentos de investigação académica, do que propriamente a um roteiro que permita estabelecer linhas de orientação de uma reflexão que nunca poderá ser configurada de forma descontextualizada. Com instrumento de auto-avaliação como aqueles que analisamos, mais do que estimular a reflexão sobre a realidade vivida pelas educadoras de infância e pelos professores, corre-se o risco de testar, apenas, o conjunto de conhecimentos teórico-práticos que é suposto todos eles dominarem. Para que serve um instrumento de avaliação deste tipo? Um instrumento de avaliação que, ainda por cima, parece revelar um outro tipo de equívoco, o de que a auto-avaliação é um processo que deverá ocorrer individualmente. A auto-avaliação de quem quer que seja é, de facto, um processo de natureza pessoal que, no entanto, necessita de ser construído a partir da inserção dos indivíduos no seio de colectivos profissionais mais amplos. Todas as boas práticas, neste domínio, apontam nesse sentido, o que, de algum modo, é uma exigência contraditória com o tipo de avaliação que o diploma propõe, já que, em última análise, esta visa, não tanto promover a colegialidade entre profissionais, mas hierarquizar e distinguir estes profissionais entre si. Como se compatibiliza uma tal finalidade com a necessidade de promover a cooperação entre docentes?

As listas de verificação, independentemente da necessidade de merecerem uma análise mais atenta e pormenorizada, confrontam-nos com outro problema, o da impossibilidade de serem usadas como instrumentos de avaliação, já que cada um dos itens dessas listas necessita de ser operacionalizado, de forma a definirem-se, posteriormente, critérios e indicadores válidos e fiáveis. Quem o fará? Quem tem competência para o fazer? Quem tem disponibilidade para os construir? Se este é um primeiro problema que não poderemos iludir, o segundo diz respeito ao processo de colheita e de processamento de dados, ao modo como estes serão recolhidos e analisados e à sua posterior utilização e divulgação. Lendo os itens seleccionados compreende-se melhor, em primeiro lugar, a enorme dificuldade da realização de um trabalho de avaliação sério e meticuloso, quer este trabalho sirva para seleccionar professores, quer este trabalho sirva para fornecer informações que permitam reflexões fundamentadas sobre a acção educativa que os docentes possam desenvolver. Em segundo lugar, compreende-se também que nos defrontamos com o problema da salvaguarda das condições de trabalho dos educadores e dos professores, na medida em que muito do sucesso profissional que estes possam obter, quer do ponto de vista dos resultados, quer do ponto de vista do tempo que estes demoram a ser obtidos, depende, certamente, das propriedades dos contextos educativos onde estes laboram e das características dos actores sociais e educativos com os quais aqueles se relacionam. Como evitar a arbitrariedade das análises, sem se cair quer na armadilha do voluntarismo pedagógico, quer na armadilha da vitimização estéril?

Ainda que se admita que há domínios onde este problema se coloca com mais acuidade do que noutros, este é um problema que atravessa todas as categorias das listas de verificação. Admite-se, assim, que numa categoria de análise como a da «relação pedagógica com os alunos»(5) esta tarefa seja bem mais complexa e, de certo modo, quase que impossível de viabilizar, em comparação, por exemplo, com a tarefa de avaliar o «apoio às aprendizagens dos alunos», ainda que isto não signifique que esta operação possa ser realizada de forma absolutamente rigorosa e asséptica.

Como se assegura a justiça e a equidade com instrumentos de avaliação tão precários do ponto de vista da sua validade e fiabilidade? Não se assegura e esse é o problema maior a enfrentar. Um problema sério porque esta é a situação que melhor propicia a possibilidade de se alimentarem comportamentos autocráticos, situações de compadrio, as posturas defensivas e o calculismo hipócrita, impedindo-se, assim, ou, pelo menos, obstaculizando-se as iniciativas que possam conduzir à a afirmação e ao desenvolvimento profissional dos professores. Um problema sério porque, face às dificuldades metodológicas enunciadas e ao reconhecimento do risco de uma tal operação, pode até acontecer que a avaliação acabe por dar origem a um exercício burocrático e sem sentido que, nomeadamente, se constrói como uma iniciativa centrada nos interesses corporativos dos professores.

Uma outra e última dimensão, que importa valorizar, é aquela que diz respeito ao período temporal a que a avaliação do desempenho dos professores diz respeito. A obrigatoriedade de avaliações anuais pode constituir uma situação penalizadora para muitos professores, nomeadamente aqueles que intervêm em contextos profissionais problemáticos e que necessitam de mais tempo para poderem provar a excelência da acção profissional que protagonizaram. Eis-nos, assim, perante uma questão que não poderá ser iludida, mesmo em situações profissionais menos exigentes, o que significa, então, que a problemática relativa ao período temporal da avaliação previsto no diploma obriga a uma discussão mais cuidada com os representantes da actual equipa ministerial.

Em conclusão, pode afirmar-se que o diploma proposto resulta de um equívoco matricial, o de subordinar a avaliação do desempenho docente a um ECD que penaliza a afirmação profissional dos professores, acabando por concretizar-se como um documento tecnicamente incompetente. Um documento que por não estimular a reflexão de educadores e professores não permite que estes possam confrontar-se, enquanto profissionais, com as suas limitações, equívocos e potencialidades. Um documento que não cumpre o que apregoa como produto de uma medida que tem vindo a ser justificada pela necessidade de uma acção educativa, nos nossos jardins-de-infância e nas nossas escolas, mais exigente e rigorosa. Exigência e rigor estes que, convém que se diga, a proposta do Ministério da Educação inibe e impossibilita.

Ariana Cosme e Rui   Trindade

Direcção do Sindicato dos Professores do Norte - spn
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

Notas:

 (1) Os objectivos individuais não poderão ser definidos, de forma prévia, em torno do conjunto de categorias que o art. 9º propõe, quanto mais não seja porque essas categorias não exprimem exigências de carácter universal. Isto é, nem todos os professores se defrontam, por exemplo, com a necessidade de promover acções capazes de contribuir para a redução do abandono escolar ou de prestar apoio a alunos que manifestem dificuldades de aprendizagem. Em suma, os objectivos individuais não têm que ser prescritos em documentos jurídicos de aplicação universal. Basta que estes documentos definam os objectivos e as dimensões da avaliação, deixando às escolas e aos professores a prerrogativa de definirem esses objectivos.

 (2) Para além de discordarmos do facto de ser necessário «desempatar» docentes que tenham as menções de Excelente ou de Muito Bom, parece-nos excessivo que seja o Ministério da Educação a definir as condições desse «desempate». Esta é uma operação que, apesar de ignominiosa, não pode competir a uma estrutura tão distante e impessoal como é um Ministério da Educação (M.E.). Admite-se que o M.E. possa obrigar as escolas a definir previamente os critérios dos «desempates», mas não pode, de forma alguma, substituir as escolas nesta função.  Reconheça-se no entanto, e mais uma vez, que este artigo, o 23º, e o modo como o mesmo se encontra formulado revela como a avaliação do desempenho docente é entendida como uma operação subsidiária da gestão da carreira dos professores, assumindo-se, sobretudo, como um dispositivo de legitimação de um projecto que, neste âmbito, penaliza as possibilidades do desenvolvimento profissional dos docentes. 

(3) Se este é um problema a enfrentar quando se discute a proposta, o outro problema, relacionado com o problema anterior, tem a ver com o facto, já referenciado por nós neste relatório, desta mesma proposta aparecer formulada de forma subordinada ao Estatuto da Carreira Docente, sendo assim instrumentalizada por este e impedindo, de alguma forma, o desenvolvimento de um projecto de avaliação que permita, mais do que compreender de forma circunscrita os sentidos do trabalho docente que se realiza, tomar decisões sobre e a partir do mesmo. Nesta proposta, graças à referida articulação com um ECD que se justifica mais por critérios de carácter economicista do que por razões relacionadas com o desenvolvimento e a afirmação profissional dos professores, a avaliação do desempenho acaba por ser contraditória com a necessidade de construir colectivos docentes tão avisados quanto solidários, capazes de reflectir de forma desinteressada no trabalho que desenvolvem.

 (4) Fazem parte desse conjunto de listas aquelas que dizem respeito à: (i) avaliação dos professores titulares que exercem as funções de Coordenação de Departamentos e de Conselho de Docentes; (ii) avaliação dos docentes do Pré-Escolar, do 1º, 2º e 3º Ciclos e do Ensino Secundário; (iii) auto-avaliação do desempenho dos docentes do 1º, 2º e 3º Ciclos e do Ensino Secundário; (iv) avaliação do desempenho dos docentes do 2º e 3º Ciclos e do Ensino Secundário; (v) avaliação dos docentes do 1º Ciclo; (vi) auto-avaliação das Educadoras de Infância e (vii) avaliação das Educadoras de Infância realizadas pelo Coordenador.  

(5) Como podemos avaliar, numa escala de 1 a 4, a disponibilidade do docente para atender e apoiar os seus alunos? Como podemos avaliar, utilizando a mesma escala, se o docente cria um ambiente de trabalho que favorece a convivência e o respeito pelos outros?

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