Os corvos que para aí andam

31 de março de 2020

"Opinião", de Álvaro Vasconcelos, no Público (Edição de 31 de março de 2020)

 

Na macabra contabilidade do número de mortes, anunciada como as cotações na bolsa que as acompanha na queda, o medo vira terror em noticiários sensacionalistas. Na rua onde estou confinado, a vizinha da casa da frente — de onde me chega o som em contínuo da televisão —, com a terrível idade da população em alto risco, como somos lembrados constantemente, alerta-me: “Vizinho, veja a televisão, que medo, é terrível!” Medo do vírus, mas cada vez mais de um futuro de miséria, na maior recessão desde a que devastou os anos 1930.

Na Europa, os governos procuram canalizar o medo para impor medidas de emergência no combate à pandemia e fazem apelos à “união da nação”. Herdeiros do estado-providência, muitos governos, socialistas e do centro, tomam medidas para garantir os salários aos confinados, e salvar as empresas.

A gripe espanhola já foi há 100 anos, e a peste negra pertence aos livros de História. As referências usadas são as da guerra e os discursos inspirados nos líderes que a venceram. Metáfora perigosa.

É bom lembrar que a extrema-direita, na Europa, renasceu da propagação do medo contra os muçulmanos e os migrantes, facilitada pela chamada guerra contra o terrorismo, da “guerra de civilizações”, do nós e eles que todas as guerras criam.

A extrema-direita tentou, sem sucesso, transformar a luta contra a pandemia numa cruzada racista, como Salvini que afirmou que o vírus tinha sido introduzido por migrantes africanos, e Trump que arengou contra o “vírus chinês” e tomou medidas de exceção contra os migrantes.

O estado de emergência tornou a extrema-direita na oposição inaudível, mas os seus líderes esperam que as medidas que limitam as liberdades habituem os cidadãos à ideia de que a autocracia é o sistema que melhor os protege. Exacerbando um discurso securitário à base de catastrofismo e teorias da conspiração, acreditam que o exemplo chinês lhes pode ser favorável.

O poder chinês, que começou por esconder a existência do novo coronavírus, impôs medidas de controlo dos cidadãos, acedendo aos seus telemóveis e vigiando, através de câmaras de reconhecimento facial, as suas deslocações, como já vinha fazendo.

O autocrata Orbán, na Hungria, mostra bem como a extrema-direita pensa aproveitar-se da crise, procura impor o estado de emergência por tempo ilimitado e penas pesadas a jornalistas.

As posições obscurantistas de Trump e de Bolsonaro, tentando negar a evidência científica, não são um exemplo que ajude a extrema-direita europeia. Se Trump decidiu, em ano eleitoral, assumir a posição de Presidente de Guerra, ambos, em declarações e atitudes criminosas, desvalorizam a pandemia e o número de mortos para salvar as bolsas e os seus interesses.

Para derrotar o vírus em democracia, para vencer a paralisia que o terror cria, é indispensável ter confiança nos cidadãos, garantir uma informação rigorosa e mostrar que a pandemia pode ser vencida. As medidas de exceção devem ser transitórias e sempre aplicadas no respeito pelo Estado de direito e pela liberdade de informação.

Da acção da União Europeia dependerá, em boa medida, o resultado deste teste dificílimo que enfrentam as democracias liberais.

A União Europeia, depois de todas as hesitações iniciais, tem tomado medidas sem precedentes para proteger o sistema financeiro e o mercado único. Medidas insuficientes, uma vez que é preciso mutualizar a divida e criar um mega-fundo europeu para proteger todos os europeus, sem exceção e socorrer os países mais carenciados. A Alemanha e os seus preconceituosos aliados têm de assumir que é a hora da Europa. Como declarou Jacques Delors, a falta de solidariedade é um perigo mortal.

Mais, a União Europeia tem sido negligente no domínio da ajuda humanitária, o que é incompreensível, dado que esse foi um domínio privilegiado da sua ação internacional. É inadmissível que os apelos de Itália tenham ficado sem resposta. Perante as insuficiências da União Europeia surgem a China e mesmo a Rússia, com operações de socorro humanitário.

Os neofascistas esperam que a crise reforce o nacionalismo, o “salve-se quem puder”, que as fronteiras que hoje se fecham não voltem a abrir. Desejam também que se prove a inutilidade da União Europeia e das organizações mundiais para nos proteger.

Mas outro destino é possível. Desta pandemia pode sair uma Europa mais democrática e fraterna, liberta do dogma do neoliberalismo, mais determinada e eficaz na defesa da vida na casa comum que é a Terra. Em suma, que a comunidade das Nações democráticas da Europa volte a ser uma esperança para o Mundo.

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