"Quem adormece em democracia acorda em ditadura." [*]

19 de agosto de 2020

 

Nós, escritores portugueses e de língua portuguesa, estamos, por ofício, cientes do poder da palavra. E do poder da sua omissão também. Conhecemos os custos de dar palco ao que, em circunstâncias normais, não mereceria uma nota de rodapé. Pondo em cena aquilo que não é de cena – aquilo que é, e não só etimologicamente, obsceno.

Preferimos correr esse risco face às circunstâncias vividas em Portugal, que consideramos graves e inquietantes, nos domínios do racismo, do populismo, da xenofobia, da homofobia, das emoções induzidas, da confusão destas com ideias e, em geral, de tudo aquilo que de mais repugnante pode emergir de uma sociedade em crise e em estado de medo.

Temos de reagir antes que seja tarde. E usar as palavras contra o insidioso ataque à democracia, ao multiculturalismo, à justiça social, à tolerância, à inclusão, à igualdade entre géneros, à liberdade de expressão e ao debate aberto.

Exigimos compromissos políticos que detenham a escalada do populismo, da violência, da xenofobia – de todos esses reflexos primitivos, retrógrados, obscurantistas, destrutivos e abjectos. Tais são as nossas grandes riquezas: a diversidade e a tolerância. Como o expressa a língua portuguesa, feita de aglutinação, inclusão e aceitação da diferença.

Quem gosta de Portugal jamais diz «Vão!», antes diz «Venham!».

É preciso tomar consciência de que as ameaças que ora rastejam propiciam uma quebra irreparável dos valores humanistas, da solidariedade e do mútuo apoio – valores laborais e de igualdade de direitos constitucionais à saúde, à educação, ao emprego, à justiça, à cultura.

Cultura e literatura não florescem nestes tempos sufocantes, em que a terrível crise humanitária dos refugiados, nos deploráveis campos às portas da Europa, e a ameaça ecológica e ambiental, à escala planetária, são banalizadas nos noticiários. E ao que vem de trás ainda se junta o que se seguirá à pandemia da covid-19: o alastramento do desemprego e da pobreza, pasto fértil para demagogias, teses anti-imigração, racismos e extremas-direitas.

Não podemos olhar para o lado nem continuar calados, sob pena de emudecermos. Por tudo isto, nós, escritores portugueses e de língua portuguesa, assumimos o compromisso de jamais participarmos em eventos, conferências e/ou festivais conotados – seja de que maneira for – com ideias que colidam com os princípios da tolerância e da dignidade humana.

A todos os cidadãos portugueses, à sociedade civil, aos professores das escolas e das universidades, apelamos a que se distanciem de projectos e movimentos antidemocráticos e ajudem na consciencialização das novas gerações para a urgência dos valores humanistas e para os riscos das extremas-direitas; aos órgãos de justiça, que investiguem, processem e condenem os interesses económico-financeiros que se servem dos novos populismos para, a coberto da raiva e da intolerância, acentuarem as desigualdades de que sempre se sustentaram; às autoridades policiais e aos seus agentes, que se abstenham de condescender com movimentos e acções promotores da exclusão, da discriminação e da violência; à comunicação social, que assuma com veemência o seu papel de contraditório e de defesa da verdade; aos partidos políticos, que sejam capazes de recuperar os princípios esquecidos no decurso do jogo partidário de vocação eleitoral; ao Presidente da República, à Assembleia da República e ao Governo, que exerçam um escrutínio rigoroso da constitucionalidade e assegurem que o fascismo não passará.

Na certeza de que, como sempre nos mostrou a História, quem adormece em democracia acorda em ditadura,

os escritores de língua portuguesa:

Segue-se a identificação dos 187 subscritores, entre os quais Adriana Lisboa, Afonso Cruz, Alice Vieira, Álvaro Magalhães, Ana Cristina Silva, Ana Luísa Amaral, Andréa del Fuego, António Borges Coelho, António Mota, Chico Buarque, Hélia Correia, Isabela Figueiredo, João de Melo, João Tordo, José Eduardo Agualusa, José Fanha, José Jorge Letria, José Luís Peixoto, José Manuel Mendes, Julián Fuks, Júlio Machado Vaz, Lídia Jorge, Luísa Costa Gomes, Luísa Ducla Soares, Mário Cláudio, Mário de Carvalho, Mia Couto, Ondjaki, Pepetela, Rui Zink, Sérgio Godinho, Valter Hugo Mãe e a Fundação José Saramago (ver lista completa em anexo)

RTP e Antena 1 — Contra o racismo. Escritores de Língua Portuguesa assinam carta aberta

SIC — Escritores de Língua Portuguesa assinam carta aberta contra o racismo


[*] Título do editor

Anexos

187 escritores – carta aberta

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